segunda-feira, 22 de agosto de 2011

A supremacia da música sobre a letra (ou vice-versa) - por Joêzer Mendonça

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O que tem mais impacto sobre uma pessoa? A música ou a letra da música? Essa é uma pergunta de difícil resposta e não raro vemos gente defendendo a supremacia da música sobre a letra ou vice-versa. A letra, é claro, não é algo desimportante. No entanto, mesmo quando a letra e a música estão muito bem conjugadas, determinada letra pode não ser bem compreendida ou tal música pode não representar bem as expectativas do público.

Por exemplo, Tom Jobim foi inacreditavelmente vaiado no III Festival Internacional da Canção (1968), quando sua música "Sabiá", de harmonia sofisticada e letra lírica, venceu a simples e direta "Pra não dizer que não falei das flores", dos versos “Caminhando e cantando e seguindo a canção...” Para a plateia, a letra parecia o elemento principal da estética musical. Apesar de não ser um festival da "canção mais politizada", os apupadores desqualificaram a melodia, o arranjo e a poesia de "Sabiá", mesmo que esta trouxesse, nas suas entrelinhas, o lamento de um sujeito forçado ao exílio. O contexto sociopolítico da época "exigia" uma letra e um estilo musical que explicitassem os anseios ideológicos da plateia. No entanto, o júri não deu ouvidos à voz rouca dos festivais e premiou a canção de Jobim e Chico, considerada estruturalmente mais apurada.

Na música cristã, o debate é um tanto semelhante. Alguns defendem que a escolha do estilo musical é de ordem primordial para a adoração, sendo que os temas da cristandade devem ser tratados por meio de uma música alegre ou reverente ou alegremente reverente. Para esses, a letra religiosa merece estilos musicais que inspirem religiosidade ou estejam tradicionalmente relacionados à alegria tranquila ou à solenidade sem artifícios. Outros creem que a letra, ao tratar de temas cristãos, "sacraliza" de antemão qualquer estilo musical, pois a força literária prevalece sobre o impacto estritamente musical. O gênero musical estaria a serviço de um bem maior, a evangelização contextualizada, capaz de atingir diferentes nichos culturais. 

Há duas questões complementares aqui. Primeiro, nem todo estilo musical pode servir adequadamente à mensagem de uma letra. No caso da MPB, Carlos Lyra, ao ligar-se aos movimentos de resistência política universitária nos anos 60, renunciou à bossa nova, pois acreditava que esse estilo, referencialmente rebuscado, com influências jazzísticas e letras que versavam sobre "o amor, o sorriso e a flor", não funcionava como música de confronto e de protesto. A rusticidade do baião e do samba, além de associados a uma suposta raiz nacional e ao homem do povo, serviria melhor aos propósitos ideológicos dos movimentos da época.

Quem acredita que nem todo estilo musical é apropriado para os momentos  de adoração coletiva, pode perguntar: se a bossa nova foi considerada um elemento refinado e doce demais para as durezas da confrontação política, então o pagode ou a axé-music, por conta de suas referências, são realmente adequados para expressar os temas cristãos nos cultos? Bastaria enunciar uma letra religiosa para “cristianizar” esses estilos?

Nossa recepção a uma canção é afetada pelas referências que ela traz. Quanto a isso, não é possível ficar imune. Numa época de saturação audiovisual como a nossa é difícil negar a referencialidade cultural presente numa música. Talvez o cantor ou o compositor cristãos não queiram que alguém se obrigue a fazer associações estilísticas ao ouvir uma canção, mas eles também não podem evitar que alguém venha a fazê-las.

Em segundo lugar, o êxito de um estilo musical na transmissão de uma mensagem cristã depende tanto do local e tipo de evento religioso quanto da cultura musical do público. A evangelização contextualizada, aquela que procura "ser grega para os gregos e romana para os romanos", a fim de alcançar alguns dentre todos, não é facilmente criticável. Há resultados válidos, mas também vale alertar para o perigo do pragmatismo inquestionável, o evangelismo utilitário que abre espaço para qualquer forma musical sem levar em conta o público, o local e o evento (a quem se destina, aonde é realizado e qual a natureza do evento).

Ademais, alguns músicos abusam de efeitos vocais, performances cênicas e letras que, nem sempre injustamente, são considerados desonrosas para a mensagem cristã. Não posso concordar com a vã separação que se tenta fazer entre música e letra de uma canção. Ora, uma canção é exatamente a conjunção de letra e música. Nem sempre é válido analisar uma letra à parte de sua melodia, de seu arranjo e, por vezes, até da interpretação vocal de quem está cantando. O argumento de que a forma musical é irrelevante diante do conteúdo que se transmite nas letras, complementada por uma negligência em relação à cultura e às expectativas litúrgico-musicais de uma congregação, revela não apenas um modo obtuso de pensamento musical, mas também um modelo superficial de pensamento evangelístico.






Soli Deo Gloria!

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