sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Saudade do que ainda não vi...

20 de janeiro de 2017. 

Neste primeiro mês do ano, finalmente tive um tempo para vir aqui e [tentar] escrever algo novo. Neste caso, espero que as idéias que têm fervilhado na mente sejam úteis para quem vier a ler o que será escrito a partir delas... Logo, como se diz na França, "on y va!" ou " vamos lá!".

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O título desse texto faz uso de uma pequena frase extraída da letra da canção "Índios", da Legião Urbana [que já foi base para outro post]; mas, dessa vez, não farei uma análise da música em si, contudo procurarei falar sobre a questão da "saudade" em suas variadas instâncias, inclusive algumas mais ignoradas pela maioria - espero ter sorte nesse desafio. 

Saudade.

Saudade é uma palavra particular do idioma português [o qual, segundo Miguel de Cervantes, escritor espanhol e autor do clássico "Don Quijote de la Mancha", era o idioma mais sonoramente bonito que ele conheceu e que, infelizmente, nesses nossos dias nefastos, tem sido assassinado na internet, nas músicas e até mesmo dentro da academia - não é verdade, "amigxs"?] que expressa o sentimento de "ausência", "carência" ou de "falta" associado ao desejo de ter essa "ausência"/"carência" solucionada, entretanto sem verbete análogo em nenhuma das línguas mais comuns no Ocidente. Por exemplo, em inglês, a expressão para saudade de alguém é "I miss you", que em espanhol é "Te extraño", e que em italiano e francês é, respectivamente, "Tu mi manchi" e "Tu me manques", as quais destacam somente o sentimento de tristeza pela ausência/falta do outro - ora, não existe nenhuma expressão correspondente a "matar a saudade" em nenhum desses idiomas, fato que torna a expressão "saudade" singular. 

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Em primeiro lugar, quando se fala sobre saudade, pelo menos no sentido português da palavra, deve-se salientar a ascensão de uma mistura de sentimentos bons e ruins, os quais unem o pesar decorrente do fato de não se estar experimentando/vivenciando uma determinada situação anterior prazerosa [uma viagem, a companhia de alguém amado, um evento marcante etc.] a uma espécie de alegria somente por se ter um vislumbre dessa boa lembrança passada. Por outro lado, existem modalidades de "saudade" que realçam ainda mais essa dicotomia de emoções, particularmente aquelas em que lembramos de pessoas que já faleceram mas que, enquanto vivas, nos eram muito valiosas [o pai, a mãe, irmãos, esposa/marido etc.]. Isto é, a saudade é algo comum ao ser humano, embora os mais insensíveis dentre nós não a manifestem ou mesmo a experimentem. 

Além disso, a saudade é um tipo de emoção que pode impulsionar atitudes um tanto "arriscadas" ou "impetuosas" por parte daqueles que a sentem e que não conseguem mais suportá-la, especialmente quando envolve relacionamentos - por exemplo, quando alguém tem muitos amigos que moram longe de sua cidade ou em outros países ou, em particular, quando se está apaixonado, a saudade parece incontrolável e, dessa forma, o momento mais aguardado é aquele do "reencontro", no qual a angústia e a ansiedade serão ao menos atenuadas, como diz uma certa canção chamada "Sobre a saudade":

"Vem me acompanhar de perto
E amanhecer chovendo o dia
No silêncio, na demora
Quem nunca provou de sua companhia?

Vem da falta que me faz
Do perfume, da canção
Chega assim sem avisar
Só dá trégua quando eu te encontrar..." [Sobre a saudade, Crombie]

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No entanto, não pretendo falar apenas desses aspectos da saudade, visto que a frase temática do texto fala de ter "saudade do que ainda não se viu". 

Mas, como é possível sentir saudade do que não se conheceu ou experimentou?

Nesse sentido, o que eu relaciono aqui ao conceito de "saudade do que ainda não se viu" tem seu ponto de partida com aquilo que o teólogo francês João Calvino chamou de "sensus divinitatis" ou "senso da divindade", segundo o qual todo ser humano [sem qualquer exceção, em nenhuma época da história] possui o senso do divino em si/na consciência - ou, em outras palavras, todos sabem dentro de si mesmos que Deus é real, ainda que muitos relutem com toda a veemência contra esse testemunho interno e/ou vivam como se Ele não existisse. Na verdade, a própria oposição odiosa à idéia da realidade de Deus, imbuída da busca por "descreditá-Lo" ou "eliminá-Lo" da vida humana, atesta claramente que existe um Deus, um único Deus, embora os seres humanos façam para si mesmos "muitos deuses", como está escrito:

"Deus fez cada coisa formosa a seu tempo; Ele também colocou dentro do coração deles o senso da eternidade...". [Eclesiastes 3, vs. 11]

"Porque todos os deuses dos povos são ídolos inúteis; mas o Senhor fez os céus". [Salmo 96, vs. 5]

"Porque Nele vivemos, e nos movemos, e existimos, como também disseram alguns dos seus poetas: Dele também somos geração". [Atos dos Apóstolos 17, vs. 28] 

"Pois, ainda que existam, seja no céu, seja na terra, os assim chamados 'deuses', como de fato há muitos 'deuses' e muitos 'senhores',
Todavia, para nós há um só Deus, o Pai, do Qual são todas as coisas e por Quem vivemos, e um só Senhor, Jesus Cristo, mediante o Qual todas as coisas existem e em Quem existimos". [1 Coríntios 8, vs. 5-6]

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Porém, você ainda pode estar se perguntando... O que será que esses textos bíblicos tem a ver com "saudade do que não se viu"? Isso realmente faz algum sentido?

Inicialmente, partindo-se do pressuposto de que "somos todos geração de Deus" no que se refere à criação [Ele nos criou à Sua imagem e semelhança], o que é "gerado" traz consigo traços e características que são provenientes "dAquele que gerou" e, assim, cada um de nós tem resquícios dessa imagem divina. Por outro lado, o fato de Deus ter nos criado não indica carência em Deus - como se Ele precisasse de companhia para não "se sentir só ou incompleto" -, pois Deus é totalmente satisfeito em Si mesmo, uma vez que é chamado "Senhor dos céus e da terra" e "...nem é servido por mãos humanas, como se necessitasse de algo, mas Ele mesmo é quem dá a todos a vida, a respiração, e todas as coisas..." [Atos dos Apóstolos 17, vs. 25]. Em outras palavras, Deus não tinha qualquer obrigação ou necessidade de criar nenhum ser humano [e, por extensão, nada], de forma que nossa existência é devida a Ele, do que se infere que todo ateu só pode negar a Deus porque foi criado [e é sustentado] por Ele, como dizia G. K. Chesterton: "...se não houvesse Deus, não existiria nenhum ateu..."

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Desse modo, uma vez que o "senso da eternidade" está posto no coração humano - conforme as palavras de Herman Dooyeweerd, que disse que "...todo ser humano é um ser religioso", implicando que "...se ele não se voltar para o verdadeiro Deus, ele colocará um deus falso no lugar..." - bem como que todos os homens foram criados por um Deus que é único e possuem sua existência e vida Nele, conclui-se que o fato da maioria dos homens viverem como se Deus não existisse [ou deliberadamente "lutando contra Ele" e tudo que a Ele remete] indica que há um problema na criatura: ela está em rebelião ante a seu Criador, rebelião que começou com o pecado chamado "original" e que, por imputação representativa, passou a todos nós, sem exceção. Ora, apenas o fato de que estamos sujeitos à morte prova que o pecado dos primeiros seres humanos criados por Deus [Adão e Eva] também é "nosso" pecado, de alguma maneira, pois "...por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado entrou a morte, por isso a morte passou a todos os homens, porquanto todos pecaram..." [Romanos 5, vs. 12]. 

Ditas essas coisas, pode-se perceber que todo ser humano, em suas variadas formas, busca para si algum tipo de "sentido para a vida" ou "redenção", que consistiria na revogação ou suplantação das consequências do pecado ou, de modo mais simples, cada um busca algo que o torne satisfeito e pleno, o que denota indubitavelmente que o homem é um ser carente de algo superior a ele. Dessa forma, somente algo que seja em si mesmo totalmente pleno pode satisfazer esse anseio da alma humana, o qual é como a saudade da letra da música, que "só dará trégua" quando o homem encontrar aquilo que poderá satisfazê-lo completamente. 

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A esse respeito, vale citar as palavras escritas pelo apóstolo Paulo a seguir:

"Naquele tempo, é verdade, não tendo conhecimento de Deus, servistes àqueles que, por natureza, não são 'deuses',
Mas, agora, tendes/tendo conhecido a Deus, ou antes sois/sendo conhecidos de Deus..." [Gálatas 4, vs. 8-9a]

O texto mostra, a partir do exemplo desses novos cristãos que habitavam a região da Galácia que, anteriormente, quando não conheciam a Deus, eles haviam servido a deuses que, na verdade, não eram "deuses", mas somente "...arte e imaginação de homens...", até que, num momento, eles passaram a conhecer a Deus [ou, nas palavras de Paulo, "sendo antes conhecidos por Ele"]. Portanto, até o momento em que Deus não é revelado a nós [ou "se revela a nós"], sempre permaneceremos colocando "deuses ilusórios" no lugar do "Deus verdadeiro" - sejam divindades convencionais, sejam coisas/pessoas que passam a ser "divinizadas". Logo, é necessário que Deus intervenha no curso de nossa vida de maneira que Ele se dê a conhecer a nós e, como resultado, voltemos nosso olhar para Aquele "...em quem vivemos, nos movemos e existimos..." e de Quem "...somos todos geração...". 

Porém, na verdade, Ele já interveio no curso da história inteira.

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Deus, o Pai, na "plenitude dos tempos", enviou Seu Filho Unigênito ao mundo - Aquele que disse, dentre tantas afirmações estarrecedoras, coisas como "....quem vê a mim, vê o Pai...", "...eu e o Pai somos um...", "...antes que Abraão existisse, Eu Sou..." etc. bem como fez coisas que só a Deus se atribuiria, a exemplo de ressuscitar mortos, curar leprosos, cegos e paralíticos, expelir espíritos malignos e mesmo perdoar pecados - a fim de que todos os homens, aos quais Ele concedeu por criação o "sensus divinitatis", pudessem não apenas ter uma noção imprecisa e incerta dessa "divindade", mas a contemplasse como de fato é, pois está escrito que Jesus Cristo, o Nazareno, é "...a imagem do Deus invisível..." assim como é "...o resplendor da glória de Deus e a expressa imagem de Seu ser...". Ou seja, não é mais necessário buscar a chamada "satisfação" em vários lugares diferentes como que por "tentativa e erro", porque também está escrito que Deus deseja que nós O busquemos e O encontremos, mas devemos "...buscá-Lo de todo o coração..." e Ele será achado por nós. Sim, Aquele que tem em Si "...o manancial da vida...", que "...em cuja Luz, nós vemos a luz" e que "...alumia as nossas trevas..." pode ser achado, pois "...Ele não está longe de cada um de nós...".

Finalmente, para aqueles que já O encontraram [ou, de maneira mais correta, que foram encontrados por Ele] resta a esperança de que, após uma jornada de perdas e ganhos e de sofrimentos e alegrias, nada mais poderá separá-los da presença visível e constante Dele, com plenitude de alegria e delícias perpétuas. Mas, enquanto isso, permanece aquela já mencionada "saudade do que ainda não se viu" - embora nenhum de nós tenha uma noção total de como deve ser o "céu", por assim dizer -, como se já tivéssemos pertencido/vivido essa realidade futura, ainda que para nós ela seja somente isso - um futuroEssa "saudade do que ainda não se vê" é tão-somente o anseio por "dar um fim" à separação que mais inquieta a alma daquele que ama a Deus e que também é amado por Elecomo disse Agostinho, "Ó Deus, Tu nos fizeste para Ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não descansa em Ti" ou nas palavras de uma canção que diz:

"Meu Lar, feito sobre a Rocha
É casa aberta pra gente ficar 
É canto que eu vi, bem antes de estar
É perto do Pai, meu rumo e meu cais..." [Meu Lar, Palavrantiga]

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Em suma, as palavras da canção denotam que para aquele que tem essa "saudade", o céu é um lugar que já foi "visto antes de se estar nele", sendo "o rumo e o cais" daquele que o deseja, pois está escrito de alguns que assim viveram que "...morreram na fé, sem terem recebido as promessas, mas as viram de longe, e creram nelas, e as abraçaram, confessando que eram estrangeiros e peregrinos na terra, de modo que os que assim falam mostram que estão buscando uma pátria... Mas, se estivessem pensando naquela de onde saíram, teriam oportunidade de voltar, entretanto, esperavam eles uma pátria melhor, isto é, a celestial..." [Hebreus 11, vs. 13-16a]. Isto é, ainda que existisse aquela saudade da pátria natal, nada para eles era mais valioso que aquela "outra pátria", pátria da qual Deus é o construtor, preparada por Ele mesmo para aqueles que aguardam ansiosamente por ela, cuja "saudade" é, de certa maneira, o desejo de "matar o que está matando", como no caso daquele que quer encontrar a pessoa amada para "matar a saudade", porém não apenas por alguns dias, senão que para toda a eternidade.

Ora, uma vez que todos nós provavelmente já sentimos [ou mesmo estamos com saudade de algo ou alguém agora mesmo], já paramos para pensar se tivemos/temos aquela "saudade do que ainda não se viu"?

Como está seu anseio pela eternidade? Você não dá a menor importância para isso, pensa de vez em quando ou realmente anseia por aquilo que é eterno mais do que por qualquer outra coisa?

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No mais, uma vez que ninguém escapará da eternidade - seja no céu, seja fora dele -, como está seu anseio por Aquele que pode garantir a você aquela eternidade que produz "saudade" em quem ainda não a viu?





Pela alegria de ter saudade pelo que ainda não vi,





Soli Deo Gloria!