sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Sic transit gloria mundi et idola suis...

Estou aqui novamente e, desta vez, creio que precisarei escrever bastante.

Todavia, espero não usar esse espaço leviana ou inutilmente, visto que o que pretendo abordar é algo que produz em mim temor e tremor, mas que ao mesmo tempo me é de grande valor. Que Deus, assim, seja misericordioso - ou como diziam os cristãos antigos, "Kyrie Eléison". 


Em primeiro lugar, o significado da frase em latim presente no título é "...assim passa a glória do mundo e dos seus ídolos...". Logo, o tema central desse texto de outubro é mostrar, sem qualquer partidarismo ou frescura (por assim dizer), que todas as coisas que nos cercam (sejam elas vis ou preciosas) e, dentre elas, tudo aquilo a que conferimos valor supremo e ocupa o foco de nossas afeições e dedicação, é passageiro, transitório, fugaz, efêmero e, no fim das contas, inútil. Desse modo, minha intenção [talvez a principal ou única] é tirar as máscaras [literal e alegoricamente] de todos os nossos ídolos, a fim de nos fazer entender o que de fato merece a nossa maior estima, amor e valorização. 

Dito isso, creio que as palavras-chave para a exposição do tema desse post são "glória", "mundo" e "ídolos". A palavra "glória" está relacionada a "esplendor", "brilho", "poder", "algo que traz encanto ou fascínio" ou mesmo "peso" [como na palavra hebraica "kavod", muitas vezes usada no Antigo Testamento]; o termo "mundo" pode assumir vários significados [ou é, por si só, polissêmico] e pode se referir ao "mundo físico" no qual vivemos, ao mundo metafísico ou espiritual e, dentro do pensamento cristão, a um "sistema que se opõe a Deus e aos que temem a Ele"; finalmente, a palavra "ídolo" é relativa a algum "objeto de adoração que representa materialmente uma entidade espiritual ou divina, ao qual freqüentemente se associa poderes sobrenaturais", porém é mais amplamente entendida como qualquer coisa ou ente que seja considerado supremo(a), deificado ou sacralizado de tal modo a ser alvo de devoção. Portanto, tendo tais conceitos bem esclarecidos, procurarei discorrer sobre as idéias que têm ocupado meus pensamentos nas últimas semanas, tendo em vista a expressão das "indignações de cada dia" de maneira que, como consta acima, os que lerem esse texto sejam compelidos [assim como eu tenho sido ao refletir sobre ele], nas palavras do apóstolo Paulo aos cristãos de Tessalônica, a "abandonar os ídolos a fim de servir ao Deus vivo e verdadeiro" [1 Tess. 1, vs. 9]. 


Dessa maneira, existem algumas perguntas que nortearão o restante do texto: quais são as coisas nas quais o mundo se gloria - ou, em que reside a glória do mundo? Conseqüentemente, quais são os ídolos de nosso tempo e que atraem a devoção do mundo? E, finalmente, por que todas essas coisas são temporárias e não permanecem? 

No tocante à glória do mundo, se formos observar a história humana - literatura religiosa, romances, poesias, dramas, registros documentais e todo tipo de legado cultural -, concluiremos que os seres humanos sempre têm se gloriado em coisas que estão vinculadas a poder, prestígio, força, prazer, autonomia e ao controle sobre o conhecimento. Por exemplo, no relato bíblico sobre o episódio da Torre de Babel (Gênesis 11), pode-se notar que os que se empenharam em construí-la desejaram "fazer um nome para si mesmos" através de uma cidade e de uma "torre que chegasse aos céus" (vs. 4) - o que denota a intenção clara de vangloriarem-se em seus próprios feitos. Em seguida, o texto mostra que Deus intervém e diz "...desçamos e confundamos a sua linguagem, a fim de que eles não se compreendam..." (vs. 7) e, como resultado, eles foram "dispersos por Deus pela superfície de toda a terra" e "pararam de construir a cidade" (vs. 8). Ao fim da história, está escrito que "...por isso o lugar se chamou Babel - i.e., confusão -, porque o Senhor confundiu a linguagem de toda a terra e os dispersou por toda a face da terra..." (vs. 9), termo hebraico de onde vem a palavra  portuguesa "Babilônia" - a "grande cidade", que foi capital de um dos maiores impérios do mundo antigo e que, nas Escrituras, muitas vezes representa a perversão e a rebelião contra Deus, cuja "glória" será finalmente reduzida a nada num futuro ainda por vir (vide Apocalipse 18). 

Desse modo, a história de Babel (e, igualmente, de Babilônia) serve para ilustrar que, embora a nossa realidade seja [em muitos sentidos] diferente daquela dos povos do Médio Oriente/Oriente Próximo entre 2000 a.C. e o início da Era Cristã, os seres humanos continuam buscando realizar coisas das quais possam se gloriar, uma vez que também anelam "alcançar renome" e, quase sempre, lograr poder a ponto de deificarem a si próprios. Para isso, basta  tão-somente olharmos os relatos a respeito dos imperadores antigos (que eram adorados como deuses, como no Egito e em Roma) e/ou dos ditadores dos séculos mais recentes até nossos dias (que também exigiam/exigem obediência irrestrita e submissão total), de tal sorte que seus nomes estão [ao menos por enquanto] registrados na História devido às marcas impressas por eles por piores que tenham sido - e ainda estejam sendo, posto que (provavelmente), mais do que nunca, a sanha de alguns de nós por controle total e ilimitado está cada vez mais insaciável e, infelizmente, de igual modo mais acessível e inevitável. 



Por outro lado, a respeito dos ídolos, sabe-se a partir do testemunho histórico que, em todas as culturas e povos e em todas as épocas, os seres humanos constituíram para si mesmos seus próprios objetos ou entidades de/para culto, os quais foram por muitos séculos representados e/ou associados a elementos ou coisas presentes na natureza (p. ex., o sol e a lua, que entre os babilônios eram materializações dos deuses Shammash e Sin, respectivamente), a animais (vide o panteão egípcio), a figuras míticas (como nas mitologias grega, nórdica e mesmo nas culturas tribais africanas) e também em forma humana. Todavia, atualmente a idolatria tem recebido novas roupagens, as quais não necessariamente tem incluído o uso de artefatos materiais mas, sim, de conceitos, idéias, construtos sócio-políticos e simulacros intelectuais ou religiosos - o que ratifica a sua etimologia mesma, posto que é advinda do termo (transliterado) grego "eídolon" que quer dizer "simulacro". 

Destarte, creio que os principais ídolos aos quais os seres humanos têm se devotado ultimamente (em particular nos últimos 250 anos) são a "ciência" e a "política" - seja mais a um, seja ao outro ou a ambos de acordo com a conveniência. Como parte dessa idolatria, segue-se a confiança irrestrita na autonomia da razão humana e na suficiência do aparato científico para se determinar o que é verdade ou mentira ou o que é bom ou mau (como se vê no 'racionalismo' e no 'cientificismo') juntamente com a mentalidade obstinada pela qual a política é o campo de ação para a remodelagem de uma nova realidade (conforme tem sido expresso nos experimentos revolucionários dos últimos 100 anos). Desse modo, como provavelmente já escrevi antes aqui, a "ciência" assume a condição de um "ente uno" que possui um discurso "quasi-dogmático" e "monótono"  (cuja comunidade se torna o "sacerdócio intelectual e epistemológico" de toda a humanidade) e os movimentos políticos passam a formar a imaginação moral de modo massificado através de seu discurso e seus símbolos e, assim, dirigem os comportamentos humanos como um "poder onipresente e invisível" (nas palavras de Antonio Gramsci) sob a batuta da "fé metastática" (explicada pelo Eric Voegelin), a qual é como um câncer em estágio avançado, pois perpassa todo o modus operandi social com o sentimento escatológico de que traz consigo a única alternativa de redenção plausível - mesmo que seja através da "crítica radical de tudo quanto existe" acompanhada da "destruição de tudo quanto for possível". 

À parte isso, o que mais me entristece [e igualmente me deixa indignado] é ter de reconhecer que tais ídolos não têm sido venerados somente por aqueles que não têm o conhecimento do Deus verdadeiro que demanda adoração exclusiva (vide os Dez Mandamentos). No entanto, semelhantemente aos "idólatras hodiernos", muitos que professam o nome de Deus como o Único a quem servem e adoram têm tido, ao longo dos séculos, "outros deuses além Dele", feitos à "imagem e semelhança" de seus adoradores, sejam estes dentre os que ardilosamente tentam diferenciar "doulía" de "latria" para camuflarem a sua tradição infame e pecaminosa ou, em contrapartida, daqueles que não possuem ícones ou estátuas mas atribuem o que é estritamente divino a coisas vãs e inúteis. 



Por tudo isso, sempre que tratamos do tema idolatria dentro do contexto cristão, ergue-se ante nossos olhos o embate "catolicismo romano" vs. "protestantismo" [e, por conseqüência, os demais segmentos ditos evangélicos]. Conforme citado acima, a doutrina católico-romana defende a distinção clara entre a "veneração" [gr. <<doulía>>, a qual pode ser prestada aos santos, às relíquias e, sobretudo, a Maria] e a "adoração" [gr. <<latría>>, oferecida tão-somente a Deus]. Nesse sentido, a veneração seria uma forma de expressar reverência e honra a determinados símbolos ou figuras que, dentro do imaginário católico-romano, se configuram como intermediários entre o devoto/cristão católico e Deus, cujo raciocínio é certamente bastante influenciado pela filosofia aristotélica e sua epistemologia, as quais ressaltam a importância do aspecto imanente da realidade frente ao aspecto transcendente. Ou seja, visto que a apreensão do conhecimento envolve obrigatoriamente os símbolos e fantasmas que guardamos na memória (conceito característico do Trivium), não é razoável desenvolver uma relação com Deus verdadeira sem a mediação de entes concretos ou exemplos reais/palpáveis (como Maria e os santos canonizados pela Igreja Católica Romana ao longo da Era Cristã). 

Em contrapartida, a teologia protestante (em todas as suas ramificações ortodoxas), ainda que rica do legado intelectual e teológico da Patrística e do Medievo, condenou veementemente tais práticas pela autoridade suprema das Escrituras e apanhando os católicos "em sua própria astúcia". No tocante ao ensino bíblico, está escrito que os israelitas "não viram forma alguma" quando Deus lhes falou do meio do fogo no Sinai (Deuteronômio 4, vs. 15) - de onde se segue a proibição total do uso de imagens para culto ou para representar a Deus bem como da veneração de qualquer coisa na criação, pois "Deus é zeloso e um fogo consumidor" (Deut. 4, vs. 24). Por outro lado, quanto ao jogo de palavras "doulía/latría", sabe-se que aquela deriva do termo "doulós" que significa <<servo, escravo>> e que esta advém do vocábulo "latreuo", o qual se refere à <<adoração, culto>>. Porém, em toda a Escritura (particularmente no AT e, em seguida, no NT), "servir" e "adorar/prestar culto" normalmente se referem à mesma atitude ou conduta [p. ex., Salmo 100:2 e Mateus 4:10], de modo que a distinção semântica feita pelos católico-romanos não passa de um artifício falacioso para mascararem o que acontece na prática: os santos, as relíquias e principalmente Maria são objetos de adoração (basta ver todos os dogmas relacionados a ela!) e, assim, uma vez que aquilo que é devido apenas a Deus (Pai, Filho e Espírito Santo) é dado a outrem, Ele não é verdadeiramente adorado - mesmo que isso seja negado ou distorcido por eles. Logo, a forma de religião que se diz "guardiã do genuíno culto ao Deus Trino" mas cultua outras coisas não é guardiã de coisa alguma senão de sua própria falsa piedade



Contudo, considerando a afirmação de Calvino de que "o coração humano é uma fábrica de ídolos", tem-se que o pensamento protestante (reformado e também evangélico) define a idolatria como algo mais profundo do que a simples "adoração a imagens ou ícones" no âmbito litúrgico ou por meio de rituais, mas majoritariamente como uma "atitude deliberada de se direcionar os afetos e as prioridades para qualquer coisa que não seja Deus" - ou, nas palavras de Timothy Keller, o "ato de tomar qualquer coisa, ainda que lícita, e torná-la suprema". 

Dessa maneira, a idolatria também está presente nos arraiais ditos "protestantes ou evangélicos" - para minha vergonha! -, tanto naqueles contextos mais heterodoxos ou heréticos quanto nos ambientes mais ortodoxos e onde há maior instrução. De um lado, é notório que muitos líderes são tratados como "superprofetas" e que o misticismo sincrético é usado como "ponto de contato da fé" através de seus "objetos ungidos" (que são até "venerados" como as relíquias sagradas dos católicos) e, por outro, é cada vez mais prevalente a influência da ciência como a "nova chave hermenêutica" para se interpretar a Bíblia (como fruto de um 'academicismo eclesiástico') acompanhada de uma superestimação do "isentismo" político, o qual é alardeado como a única opção "não idolátrica" perante a "polarização crescente", uma vez que ninguém deseja receber a pecha de "comunista enrustido" ("eu nunca votei no PT!") e muito menos a de "bolsolavista terraplanista passapanista obscurantista negacionista antivacina et caterva". Portanto, podemos estar fazendo do "combate ao anti-intelectualismo" e da "luta contra a idolatria política" os nossos ídolos travestidos de "cosmovisão cristã reformacional" e, auto-persuadidos de nossa "grande inteligência", mostramos a nossa "sabedoria" nos podcasts, canais do Youtube, páginas no Facebook ou Instagram e, claro, sem faltar os nossos "tweets carinhosos de cada dia"! A esse respeito, faço das palavras recentes do pastor batista reformado português Tiago Cavaco (uma peça rara no meio de uma Europa cética) as minhas, quando disse que "...embora estejamos vivendo uma 'overdose de pessoas inteligentes', nunca experimentamos um momento tão burro em nossa história...". Deus me livre de ser um desses "falsamente sábios" pois, como dissera Tomás de Aquino, só Ele pode "afastar para longe a dupla obscuridade na qual nascemos: o pecado e a ignorância"

Tendo isso estabelecido, por que todas essas coisas seriam "passageiras"? 
O que torna o "sic transit gloria mundi et idola suis" uma verdade? 



Sobre a transitoriedade da glória do mundo, vou me ater a apenas um trecho bíblico escrito pelo apóstolo Paulo para não ser mais prolixo do que já devo estar sendo - o trecho diz:

"...O tempo se abrevia. Por isso, de agora em diante, não só os casados sejam como se não fossem casados, mas também os que choram, como se não chorassem; os que se alegram, como se não se alegrassem; os que compram, como se nada possuíssem; e os que se utilizam desse mundo, como se não fizessem uso dele - porque a aparência desse mundo passa..." 
[1 Coríntios 7 vs. 29-31]

O texto começa com a afirmação aterradora de "o tempo se abrevia". Mas que tempo seria esse? Esse é o tempo da permanência ou durabilidade de todas as coisas pertencentes à nossa realidade presente, de sorte que tudo aquilo que vemos, experimentamos e possuímos, incluindo as coisas que há muito são como nós as conhecemos atualmente, e mesmo o próprio mundo, possui uma espécie de "prazo de validade" (so to speak). A despeito de muitas especulações fantasiosas e certa zombaria que permeia tais reflexões, o fato é que "o mundo um dia irá acabar", quer você acredite nisso ou não - e, com base nessa afirmação, o apóstolo anuncia a todo ser humano, em toda época e cultura, de toda etnia e classe social, para não se apegar a qualquer coisa que possua como se ao menos alguma delas fosse, à semelhança de Zeus no mito grego, vencer o Khrónos (deus do tempo) e, assim, alcançar a imortalidade ou "durar para sempre". Segundo o texto, até os nossos momentos de choro, os dias felizes, os bens que adquirimos ao longo da vida, as nossas relações mais valiosas e tudo o mais quanto usufruímos têm os seus dias contados, porque está escrito que "a aparência desse mundo passa" e, com ela, a glória do mundo - ora, visto que somente Deus é eterno e imutável (Salmo 102:25-27 e Malaquias 3:6a) e que o universo está sujeito aos efeitos nefastos do pecado (ver Romanos 8, vs. 20-22), não há nada que, separado de Deus, possa ser redimido desse estado de condenação, o que implica que somente Deus, pela reconciliação do mundo Consigo, pode restaurar a glória que outrora perdemos



No que se refere à fugacidade ou vaidade dos ídolos, muitos trechos bíblicos podem ser citados, mas talvez nenhum deles seja melhor que os versos seguintes: 

"...Os ídolos das nações são prata e ouro, obra de mãos humanas.
Têm boca e não falam; têm olhos e não vêem; têm ouvidos e não ouvem; têm nariz e não cheiram; têm mãos e não apalpam; têm pés e não andam; som nenhum lhes sai da garganta.
Tornem-se semelhantes a eles aqueles que os fazem e todos os que neles confiam..." 
[Salmo 115, vs. 4-8]

Embora o texto trate do culto de divindades representadas em estátuas, talismãs e amuletos - o que era mais comum na época do salmista -, alguns elementos apresentados são característicos de todo tipo de idolatria: 1) os ídolos são obras das mãos e da imaginação dos homens; 2) o que lhes é atribuído ou creditado como sendo real não é nada além de ilusão e 3) aqueles que fazem ídolos para si mesmos e colocam sua fé e confiança neles se tornam "simulacros inúteis" à semelhança deles.  Portanto, o ser humano (em sua maioria) vem, ao longo da história, vivendo uma vida vã e fútil devido à sua ignorância a respeito do Deus Único - que, segundo o mesmo Paulo, "não é semelhante ao outro, à prata ou à pedra, feitos pela arte e imaginação do homem" (Atos dos apóstolos 17, vs. 29). 

Dessa forma, no caso particular daqueles que misturam o santo nome de Deus à adoração de seus "próprios ídolos" e "entes canonizados", a ignorância e a culpa são duplas, tendo em vista que eles têm um Livro nas mãos [porém, muitos o desprezam] que pode trazê-los "das trevas à luz", como ocorreu com certo monge agostiniano que, ao ler esse mesmo Livro há pouco mais de 500 anos num castelo na Alemanha e à luz de velas, descobriu que "...a justiça de Deus se revela no Evangelho de fé em fé, como está escrito: o justo viverá pela fé..." [Romanos 1, vs. 17].  Eis o momento em que "os portões do Paraíso se escancararam" para esse monge e, posteriormente, para tantos outros que conheceram e têm conhecido desde então a verdade dulcíssima de que Deus manifestou Sua justiça, aquela pela qual Ele nos constitui aceitáveis a Si mesmo, por meio do Evangelho, o qual não se trata de quem nós somos e do que nós fazemos, mas sim de quem Deus é e do que Ele fez em nosso favor através de Seu Filho - Jesus Cristo. Os 'ídolos inúteis' da auto-justificação e da "graça merecida" foram, enfim, lançados por terra na vida de Martinho Lutero e somente Cristo passou a ocupar o trono em seu coração regenerado



Finalmente, acredito ser oportuno fazer alguns alertas para que nenhum de nós - contra mim falo - caia no engano da "vanglória do mundo" [o que, de fato, é uma 'glória vã'] e na "futilidade de seus ídolos". 

O primeiro deles se refere ao "zelo por Deus sem entendimento", mencionado por Paulo na epístola aos Romanos em referência aos judeus que, "querendo estabelecer a sua própria justiça, não se sujeitaram à justiça de Deus" [Romanos 10, vs. 2-3]. Assim como esses judeus [ou israelitas, para ser mais abrangente] buscaram, sem sucesso algum, justificar a Si mesmos diante de Deus conforme seus próprios padrões de justiça, desde o início da Era Cristã até nossos dias os homens continuam acreditando que podem se aproximar de Deus exibindo seus "grandes feitos" e "boas obras" a tal ponto de persuadi-Lo a lhes ser propício, como se pelo fato de que tais ações virtuosas [aos olhos deles mesmos] fossem uma prerrogativa para que Deus estivesse "em dívida" com eles e, portanto, fosse obrigado a salvá-los. Essa mentalidade está presente em todas as religiões do mundo - ainda que se manifeste em formas diferentes - e, em particular, caracteriza em considerável medida o imaginário católico-romano que, embora traga em sua teologia mais elaborada um tipo de "doutrina da justificação pela fé", define os termos 'justificação' e 'fé' mediante o conceito de "justiça infundida", pela qual o pecador "justificado" desenvolve esse "princípio de justiça" colocado nele por suas próprias obras para contribuir "com sua parte" na justificação. Deus faz "a parte dele" mas, se não fizermos a "nossa", Ele não nos salva. 

Tal pensamento também é muito presente nos ambientes protestantes/evangélicos por efeito da tradição dita "arminiana" [mais precisamente "remonstrante" e não diretamente de Armínio] e em todos os contextos por ela influenciados, contudo diferindo radicalmente da herança teológica reformada [luterana, calvinista etc.] e, sobretudo, do que as Escrituras ensinam, por exemplo, nesse mesmo texto supracitado, onde se lê que "...o fim da Lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê..." (vs. 4).  Logo, fica claro que mesmo a Lei de Deus, que expressa o caráter de Seu Autor e, assim, encerra em si o padrão de justiça e pureza mais elevado que existe, não é capaz [por si só] de fazer o pecador justo "Coram Deo", servindo primordialmente para nos revelar que somos pecadores (Romanos 3, vs. 20) e, então, nos convencer de que precisamos de um Salvador que nos substitua eficazmente - tanto como um 'perfeito cumpridor da Lei' [i.e., por obediência ativa] quanto como alguém que assume a pena em nosso lugar pela nossa transgressão da Lei [i.e., por obediência passiva]. Há somente um único que possui todas essas características - Jesus Cristo, o Filho de Deus, a Suprema Dádiva de Deus aos pecadores - e, por isso, vale lembrarmos de uma frase atribuída a Lutero que diz que "...devemos nos arrepender não somente de nossas más obras, mas também de nossas 'malditas boas obras'...." ou, como brinco com meus amigos, "a salvação é pelas obras, mas somente pelas obras de Cristo". A salvação é um dom de Deus para o pecador e não um 'salário' pago pelos "méritos" conquistados por ele, visto que "Deus não deve nada a ninguém" e, se merecemos alguma coisa, é a condenação eterna (Romanos 6, vs. 23a). 



O último 'alerta' diz respeito a ídolos "lícitos", para os quais temos erguido 'altares profanos' que precisam ser derrubados urgentemente - assim como ocorreu muitas vezes por todo o Antigo Testamento. Tais ídolos, porém, não são materiais mas sim "intelectuais" e, pelo seu apelo à "razão" e ao "academicismo", estão sendo cada vez mais superestimados por muitos de nós - incluindo os "reformados". Nunca houve tanto interesse em temas como "cosmovisão cristã" ou "comunidade intelectual cristã" como nos últimos anos - o que, por um lado, me enche de felicidade, pois uma legítima vida intelectual é artigo mais raro que um flamenguista simpático -, entretanto percebo que, no meio dessa busca louvável pelo desenvolvimento de uma "visão de mundo cristã robusta e intelectualmente relevante", podemos estar nos esquecendo de cultivar a piedade e a humildade, sem as quais nosso interesse por "saber interpretar melhor a realidade" pode não ser nada além de um "pecado glorioso" [como dizia o puritano Thomas Brooks]. 

Por isso, não devemos nos descuidar a ponto de nos esquecer que, quando se trata do conhecimento de Deus, tudo começa em Deus e Nele somente (posto que "Deus é todo-revelação", frase dita [se não me engano] pelo teólogo holandês Herman Bavinck) e deve convergir novamente para Ele, de maneira que não apenas as coisas propriamente teológicas [como a Bíblia e suas doutrinas], mas tudo quanto mais existe, subsiste Nele [Colossenses 1, vs. 16-17] - i.e., 'Deus é mais real que a própria realidade' e, assim, a realidade só é real porque Deus é o fundamento e o definidor dela, sem o Qual nossos empreendimentos intelectuais [até mesmo sobre Ele] são somente especulações fúteis. Em outras palavras, nossa inteligência sempre será uma "inteligência humilhada" e, como resultado, para aprendermos sobre qualquer coisa, dependeremos sempre de outrem e, em última instância, todos dependeremos de Deus, para que "...ninguém se glorie na sua sabedoria, mas em me conhecer e em saber que Eu sou o Senhor..." [Jeremias 9, vs. 23-24]. Destruamos, portanto, com a força do Espírito de Deus e sem "escrúpulos", todo e qualquer altar que tenhamos edificado para qualquer coisa que possa nos afastar do "Verdadeiro Deus de Verdadeiro Deus e Luz de Luz" e, sobretudo, para os "ídolos permitidos" que nos seduzem pela sua "aparência de legitimidade", pois somente assim trilharemos as "veredas antigas" que foram restauradas por aqueles que, há 5 séculos, bradaram em alto e bom som, "a Deus somente seja a glória".

Ora, se as obras de Deus presentes na Criação, incluindo os céus e a terra que agora vemos, deixarão de existir (Mateus 24, vs. 35), as profecias ainda remanescentes um dia se cumprirão e até a necessidade de se "viver por fé e não por vista" (2 Coríntios 5, vs. 7) não será mais necessária [pois a visão beatífica será uma realidade para os que foram salvos por Cristo], o que dizer da glória do mundo e dos seus "ídolos"? Nada permanecerá de pé, nem mesmo na memória - todos os grandes impérios, os notáveis intelectuais, a própria ciência, os homens mais poderosos e tiranos e, graças a Deus, todo o mal que talvez permaneça impune, tudo isso terá o seu fim e Deus, Aquele que criou e sustenta o mundo que agora existe, "fará novas todas as coisas" (Apocalipse 21, vs. 5) e, nessa Nova Criação, nem haverá templo ou luz do sol na Cidade Celestial, pois "a glória de Deus a iluminará" (Apocalipse 21, vs. 23). Eu simplesmente não posso nem imaginar como será isso, mas o que sei é que desejo estar lá e não tenho outra esperança de estar senão Cristo, "o Caminho, a Verdade e a Vida" (João 14, vs. 6), "o Único Mediador entre Deus e os homens" (1 Timóteo 2, vs. 5) e que veio "buscar e salvar o que se havia perdido" (Lucas 19, vs. 10). pois, como dizia João Calvino, "para nós, apenas a glória de Deus é legítima; fora de Deus só há mera vaidade". 

Você já se deu conta de que pode estar vivendo voltado para essa "glória do mundo" que passa enquanto você lê esse texto e que, um dia, passará completamente?

Quais têm sido os seus ídolos? Você já reconheceu que, diante do conhecimento do Deus único, todos eles - sejam "ilícitos" ou "permitidos" - devem ser eliminados?

Finalmente, sabendo que os que se dedicam a ídolos inúteis e passageiros se tornam como eles, até quando você não entenderá que "tudo aquilo que não é eterno é eternamente inútil"?




Por me gloriar somente Naquele que é eterno,



Soli Deo Gloria!