Após mais um período ausente, creio que é hora de escrever novamente.
Os últimos meses têm sido muito atarefados por ocasião do encerramento do doutorado (que já está quase concluído, excetuando alguns trâmites burocráticos) e do trabalho. Todavia, não há como conter certas indignações, como os poucos que lêem este blog bem sabem. Assim, visto que não posso (e nem devo) agir do modo que muitas vezes eu gostaria, eu prefiro escrever - ora, não há necessidade de se consertar os dentes após a leitura de um texto, mesmo o mais duro e contundente deles.
Portanto, sigamos em frente e que uma justa medida de amabilidade me ajude até o fim.
Ignorância.
A palavra ignorância deriva do termo latino "ignorantia" (que está associado ao verbo "ignorare" - i.e., "não saber"), sendo formada pelo prefixo "i-" (que indica uma negação) e a terminação "-gnarus" (e.g., "sabedor", "que domina um assunto"). Logo, a ignorância se refere, primordialmente, a "não possuir o correto conhecimento sobre algo" ou "não estar ciente de alguma coisa", embora seja também usualmente relacionada a uma atitude/um comportamento áspero e destemperado.
Os "santos do pau oco".
Por outro lado, a expressão "santo do pau oco" se tornou popular no contexto brasileiro em virtude de relatos segundo os quais imagens de madeira de santos católicos eram usadas como uma "embalagem falsa" para se guardar/transportar diferentes tipos de bens e riquezas de modo ilícito. Nesse caso, tais imagens não seriam maciças em sua constituição mais interna - não obstante tivessem a mesma "aparência" de uma imagem comum - e, por isso, serviam como um "disfarce perfeito" para que os itens de interesse de quem as utilizava fossem armazenados "acima de qualquer suspeita". Isto é, por fora o "santo" parecia "de verdade", mas por dentro ele era "oco", sem substância ou consistência, servindo apenas para "simular" algo exteriormente respeitável (a exemplo de um ícone religioso) enquanto, na realidade, era tão-somente um embuste engendrado para se esconder furtos e outros delitos semelhantes. Vale salientar, por fim, que não posso afirmar em quais proporções esses relatos seriam verdadeiros ou inverídicos; todavia, isso não irá alterar a argumentação a ser desenvolvida no texto.
Considerando-se que todo o conteúdo deste post será para responder a essa pergunta e trazer a solução para o problema que ela representa, não será possível fazer isso num único parágrafo. Contudo, um bom resumo do que seria essa "santa ignorância" é: a atitude hipócrita e dissimulada de querer se mostrar virtuoso/justo e que se baseia na mentira/calúnia, a qual se expressa freqüentemente por meio de outras mentiras e calúnias e está normalmente permeada de orgulho e obstinação. Nesse sentido, é provável que a maioria de nós já tenha ouvido, em alguma situação ou contexto particular, que "a ignorância é uma bênção", porém eu espero que depois desse texto você deixe de acreditar nessa idiotice - se esse for o seu caso. Portanto, este que vos escreve estas linhas terá uma árdua missão daqui em diante: ser inflexível com os males decorrentes dessa "santa ignorância" (seja nele próprio, seja nos outros) sem agir, no entanto, com aquela "ignorância" mais ríspida (o que, admito, não será fácil!). Seja Deus o meu Mestre e Ajudador, visto que Ele é "justo em Suas palavras" e "puro em Seus juízos".
Primeiramente, esse texto é dirigido a cristãos (especialmente a evangélicos/protestantes). Entretanto, se algum leitor que não professa a fé cristã (independentemente de seu segmento) ou qualquer outra religião se interessar em continuar a leitura, fique à vontade - espero, assim, contribuir com algo útil e proveitoso para todos os que dedicarem um tempo para este texto, sejam quais forem suas convicções religiosas ou valores pessoais.
Portanto, muito embora o que está sendo tratado aqui não seja uma novidade (uma vez que, "desde que o mundo é mundo", a hipocrisia, a soberba e a insensatez existem entre os seres humanos), as mudanças históricas, sociais e culturais mais recentes têm possibilitado que tais pecados se expressem sob diferentes formas e matizes. Por exemplo, apesar de que a história humana apresenta diferentes relatos de povos que maltratavam e desprezavam outros (como os egípcios aos hebreus, ou os caldeus aos medo-persas), as categorias pelas quais muitos de nós descreveríamos esse desprezo não existiam na Antiguidade, de modo que uma análise precipitada dessas relações sociais do mundo antigo seriam facilmente anacrônicas. Desse modo, considerando-se que a nossa sociedade está testemunhando mudanças cada vez mais instantâneas, drásticas e em grande número, creio ser possível afirmar que nunca fomos tão "criativos", por assim dizer, em "emoldurar a multiforme desgraça" decorrente de nossos pecados, cujos quadros conseguem ser muito piores do que as "grandes obras da 'arte' moderna".
Como todos sabem (ou, ao menos, deveriam), a história do Cristianismo começa concretamente no século I, em Jerusalém, a partir dos primeiros seguidores de Jesus que O reconheceram e O confessaram como o Messias/o Cristo, o Ungido de Deus, o Rei, Profeta e Sacerdote que havia sido anunciado desde as primeiras páginas do Antigo Testamento (o Tanach dos judeus/israelitas). Tais seguidores, sobretudo os 12 apóstolos (com exceção de Judas Iscariotes, o traidor), conviveram com Jesus mais de perto durante os anos de Seu ministério (Galiléia, Judéia e territórios vizinhos) e, após a Sua morte, ressurreição e ascensão, passaram a proclamá-Lo como Filho de Deus e Salvador de todos os que Nele cressem. Após ferrenha oposição de parte da elite político-religiosa judaica, houve grande dispersão dos primeiros cristãos (chamados de 'seguidores do Caminho') tanto para as fronteiras da Judéia quanto para outras partes do mundo de modo que, nos primeiros 3-4 séculos, eles já estavam presentes em todo o Império Romano, na África Setentrional, no mundo persa/árabe e, provavelmente, até em regiões orientais mais distantes.
Nesse sentido, após o episódio associado ao famoso Édito de Milão (anos 312-313 d.C), a prática da religião cristã passou a ser salvaguardada, juntamente com os demais cultos existentes, pelo imperador Constantino, fato que conferiu aos cristãos uma medida de liberdade religiosa após séculos de perseguição atroz por parte do Império Romano e de outros opositores. Com o tempo, a religião cristã passou a gozar de maior prestígio perante os olhos do imperador, o que posteriormente conduziria à adoção do cristianismo com a "religião oficial/principal" do Império. Desde então, a despeito de diversos elementos e episódios positivos e notáveis que se seguiram - p. ex., os concílios ecumênicos e os grandes Credos antigos, o surgimento de teólogos admiráveis e de grandes pensadores, a vasta produção de conhecimento em diversas áreas etc. -, a genuína fé cristã foi sendo misturada com "várias doutrinas estranhas" ao cristianismo primitivo/à confissão dos pais da Igreja e, durante a Baixa Idade Média, o estado de desvio já era grave, o que despertou o surgimento de movimentos como o dos "cristãos valdenses" (na França, Itália e Suíça) e de personagens emblemáticos como John Wycliff (Oxford), Jan Huss (Praga) e Girolamo Savonarola (Florença), os quais foram severamente perseguidos pelos católicos-romanos e pagaram com a vida por desafiarem a autoridade e a idoneidade da Igreja de Roma com suas pregações ousadas e eloqüentes. Contudo, seria apenas algum tempo depois que aconteceria o maior dos rompimentos, de tal modo que um monge agostiniano, um verdadeiro "pastor-alemão" em todos os sentidos, apareceria para instilar o movimento que mudaria a história do Ocidente.
Conseqüentemente, como resultado da Reforma Protestante (se algum "Zé Cruzadinha" vier dizer que é "revolução", aconselho que estude o tema calado e com seriedade e, só depois, ouse falar algo decente) - que foi, na verdade, um movimento multifacetado, embora tivesse um cerne comum bastante definido -, diversos segmentos cristãos surgiriam na Europa Ocidental: o luteranismo, o calvinismo (que se tornou mais influente/espalhado posteriormente), o anglicanismo (calvinista em sua confissão, porém liturgicamente distinto das igrejas reformadas continentais), o anabatismo e outros grupos minoritários (jansenistas, menonitas etc.). Nesse contexto, vale ressaltar dois acontecimentos essenciais que determinarão, a partir do século XVII, todo o curso do cristianismo chamado "protestante": a) a controvérsia ocorrida nos Países Baixos/Holanda entre a Igreja Reformada (i.e., calvinista) e os remonstrantes (discípulos, em sua maioria, de Jacó Armínio (de onde vem o nome arminianismo) e b) o nascimento do movimento puritano (e.g., puritanismo) nas Ilhas Britânicas, o qual foi caracterizado por um interesse mais ávido por uma "reforma total" da Igreja inglesa e que influenciaria de modo duradouro os congregacionais, os presbiterianos (em particular), os batistas (aos quais pertenço) e até mesmo muitos anglicanos. Assim, após todo esse pano de fundo, podemos seguir para o tema central deste texto: a exposição da "santa ignorância do pau oco" e como ela pode ser substituída por uma "santa sabedoria sem fingimento", como diria o meio-irmão de Jesus na epístola de Tiago.
Dessa forma, farei um recorte dentre os grupos protestantes mencionados acima e considerarei mais especificamente o segmento batista, visto que o conheço por experiência e, dado o meu grande apreço por minhas raízes, sinto-me no dever de lutar em favor delas.
No tocante à sua história, tem sido dito que os batistas possuem 1) origens remotas, tão remotas que alguns ousam afirmar que há uma espécie de "linhagem" que tem sido conservada desde João Batista até hoje - tal hipótese não goza de qualquer fundamento sólido e, a meu ver, parece uma versão não-católica da "sucessão apostólica" -, ou que 2) sua origem está exclusivamente associada aos anabatistas (às vezes chamados de "biblicistas"), que foram protagonistas da denominada "Reforma Radical" e que, embora tenham sido também perseguidos por outros protestantes, defendiam algumas doutrinas estranhas e até mesmo místicas/gnósticas, ou ainda que 3) se originaram a partir de dois grupos teologicamente distintos: os "batistas gerais" e os "batistas particulares". Os "batistas gerais" fundaram sua primeira igreja no início do séc. XVII (1609-1610), sendo adeptos de uma confissão mais alinhada ao pensamento remonstrante/arminiano e com certas influências anabatistas e, por outro lado, os "batistas particulares", de confissão reformada/calvinista, fundaram sua primeira igreja alguns anos depois - neste caso, ambos os movimentos se organizaram na Holanda e, sobretudo, na Inglaterra. Portanto, dentre as únicas opções viáveis para a origem dos cristãos batistas, restam somente a posição 2 e/ou a posição 3, de tal modo que os defensores da posição 2 tendem a ser bastante opositores da fé reformada (sobretudo do calvinismo), ao passo que os que adotam a posição 3 demonstram uma compreensão mais honesta e abrangente da identidade batista, levando em conta tanto seus elementos anabatistas, arminianos e, em particular, sua notável base calvinista, visto que os "batistas particulares" se tornariam o segmento mais forte, duradouro e de confessionalidade mais fundamentada.
Desse modo, o grande problema em questão aqui é: em grande medida, os cristãos batistas dos dias atuais desconhecem quase que totalmente a sua real identidade e, como resultado de variadas concepções equivocadas, falaciosas e destituídas de fundamentação histórica, desprezam com infeliz ignorância muito do que há de mais belo em suas raízes. Para exemplificar isso, posso citar dois momentos nos quais vi esse problema de forma explícita.
Numa dessas ocasiões, durante uma pregação de domingo, o pastor afirmou, com convicção, que "os batistas não são protestantes, mas surgiram a partir dos 'anabatistas biblicistas'" (o que não é verdade - já que os próprios anabatistas eram "reformados" em algum sentido - e, por isso mesmo, tal afirmação jamais deveria ter sido dita num culto solene). Na outra, durante um encontro de "Escola Bíblica Dominical" (o nome que se dá, em muitas igrejas evangélicas, ao tempo de estudo mais detalhado da doutrina cristã que ocorre aos domingos) sobre os temas "salvação e eleição", diversos impropérios e calúnias foram proferidos a respeito do conhecido teólogo francês João Calvino logo após o tema "eleição" ser mencionado e, mesmo que tenha havido intervenções que salientaram a necessidade de seriedade e humildade ao se tratar de temas difíceis e de fatos/personagens históricos distantes de nossa época, possivelmente tais idéias distorcidas e inverídicas continuaram na mente de muitos que ali estavam. Assim, é exatamente pelo fato de que eu amo a igreja (i.e., amo os que professam a mesma fé que a minha) e, especialmente, os meus irmãos batistas, que fico extremamente indignado e, ao mesmo tempo, triste, pois sei que tal sentimento não é apenas meu e, nos casos em que isso ocorra em nossas próprias comunidades de fé, a raiva e a tristeza se unem à sensação de impotência, visto que muitos desses conceitos errados já se tornaram "verdades inquestionáveis", a tal ponto que nem mesmo o testemunho das Escrituras parece trazer o devido convencimento desses pecados. Logo, se este for o caso, talvez tais corações possam estar seriamente endurecidos e, infelizmente, a apostasia pode estar bem próxima, às portas.
Contudo, todos nós sabemos que um único pecado nunca é, em última análise, um "único pecado" - ele sempre traz outros 'minions' ou 'comparsas' consigo e, desse modo, o mal que foi desencadeado a partir de "palavras frívolas" ou "irrefletidas" se torna uma faísca acesa no meio de uma grande floresta, cujos incêndios de pecados adicionais se espalham por toda parte e, finalmente, o mal inicial piora até o ponto em que se torna incontrolável. Ora, o mesmo Tiago afirmou isso em sua epístola divinamente inspirada, onde se diz:
<<...A língua é um pequeno órgão do corpo, mas se vangloria de grandes coisas. Vejam como um grande bosque é incendiado por uma simples fagulha!
Assim também, a língua é um fogo; é um mundo de iniquidade. Colocada entre os membros do nosso corpo, contamina a pessoa por inteiro, incendeia todo o curso de sua vida, sendo ela mesma inflamada pelo inferno...>> [Tiago 3, vs. 5-6]
O texto bíblico acima está situado num contexto de advertência contra o "desejo de se tornar mestre", visto que os que almejam tais posições serão julgados de modo mais severo (Tg. 3, vs. 1). Portanto, a mensagem que se segue é adequadamente aplicada aos que usam do púlpito para ensinar/pregar bem como aos que estão responsáveis pelo ensino religioso (catequese/discipulado). Dessa forma, é primordialmente a essas pessoas que o autor divinamente inspirado dirige algumas das palavras mais ásperas e implacáveis de toda a Escritura, as quais devem perturbar a todos os que levam Deus a sério. Ora, o texto mostra que o homem é capaz de domar os cavalos com freios (bem como todos os demais animais), conduzir grandes navios usando um pequeno leme (ou "timão", para homenagear o Corinthians!), todavia nenhum homem, por mais eloqüente e temperante que seja, é capaz de domar a língua, a qual é chamada de "mal irrefreável" e está "cheia de veneno mortífero", visto que com ela "bendizemos a Deus, o Pai" e, simultaneamente, "amaldiçoamos os homens, feitos à imagem de Deus" (vs. 3-4 e 7-9).
Isto é, nós carregamos conosco uma arma mais destrutiva do que bombas nucleares, ou quaisquer "vírus criados em laboratório" para promover pandemias (ou "fraudemias", ou "plandemias", como vimos nos últimos anos) e até mesmo do que exércitos de máquinas assassinas e, por isso mesmo, deveríamos ser "prontos a ouvir e tardios para falar", conforme disse o rei-sábio: "...você viu alguém que é precipitado em suas palavras? Há mais esperança para um tolo do que para ele..." (Provérbios 29, vs. 20). Nesse ínterim, maior peso possuem as seguintes palavras do próprio Cristo, que afirmou: "...Raça de víboras, como podem vocês, que são maus, dizer coisas boas? Pois a boca fala do que está cheio o coração... E eu digo que, no Dia do Juízo, os homens haverão de dar conta de toda palavra inútil que tiverem falado..." (Mateus 12, vs. 34 e 36).
Diante disso, que fim nos aguarda se usamos nossa língua de forma leviana e maliciosa, embora aparentemos santidade e zelo doutrinário? Uma leitura cuidadosa dos Salmos (do qual muitos pensam ser um "livro-amuleto" para se deixar aberto na sala, enquanto a realidade é bem diferente) mostra, com clareza, que Deus é implacavelmente "intolerante" com tais pecados (Salmo 12:3-4; Salmo 50:16-21; Salmo 52:4-5; Salmo 55:9; Salmo 59:5, 7-8, 10-13; Salmo 64:7-8 etc.). Além disso, até quando muitos dentre nós se vangloriarão da própria imbecilidade ou má formação intelectual por preguiça de estudar a história (sobretudo a nossa história, as nossas origens e identidade - falo aos cristãos batistas) ou teimosia em abrir mão de idéias mentirosas sobre Deus, a Bíblia, a salvação, a teologia e os personagens da História Eclesiástica? De fato, desde que o pecado entrou no mundo, a ignorância e a insensatez são o nosso "cartão de visitas", porém a exibição da histeria e da burrice como virtudes se tornou quase que onipresente em nossos dias (sobretudo por causa do acesso imediato à informação e à internet), o que infelizmente não deixou as igrejas incólumes. Logo, o que mais necessitamos é de "libertação de uma falsa piedade" por meio do "conhecimento da verdade" (tanto nas Escrituras, quanto por meio de outras fontes documentais), pois é Cristo que diz: "conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará" (João 8, vs. 32).
Dito isso, como os "santos ignorantes do pau oco" aqui mencionados podem ser libertados, na prática, da condição em que se encontram?
De um lado, é preciso reconhecer que o Cristianismo não surgiu a partir das denominações cristãs mais recentes (nos últimos 50-100 anos), nem há 500 anos (por mais que o bom legado da Reforma deva ser devidamente celebrado) ou mesmo na Idade Média, o que mostra que Deus tem conduzido o Seu povo e preservado a Sua verdade ao longo do tempo sem precisar de nenhuma ajuda nossa (pelo menos até a nossa época). Desse modo, deve-se também compreender que muitas das verdades e princípios inegociáveis de fé que professamos (como protestantes/evangélicos) também foram consolidados muitos antes de qualquer um de nós nascer - ora, será que doutrinas como a da Trindade e a de Jesus Cristo como plenamente Deus e plenamente homem foram definidas nas letras dos hinos do Cantor Cristão (ou na Confissão de Fé de Westminster)? Por tudo isso, um dos meios indispensáveis para vencer essa "santa ignorância" é estudar a história do Cristianismo por meio de fontes realmente confiáveis, levando sempre em conta que "os fatos não se importam com nossos sentimentos" e "não são flexíveis" - i.e., as verdades concernentes à história humana e, particularmente, à história da Igreja, são o que são e, por isso, não devem estar sujeitas a qualquer espécie de manipulação, seja de romanistas pseudo-intelectuais ou de batistas subjetivistas, tanto de reformados 'neopuritanos' quanto de arminianos libertários. Parafraseando C. S. Lewis, não é Deus que deveria estar no banco dos réus, mas unicamente aqueles que acham que tem algum direito ou prerrogativa diante Dele.
Nesse sentido, é preciso que abandonemos, urgentemente, as noções erradas de que 1) "João Calvino matou Miguel Serveto" porque era o "ditador de Genebra", o "fanático que eliminava quem discordava dele" - na moral, de onde surgem idéias tão estúpidas e por que, mesmo sendo estúpidas, tais idéias acham terreno fértil na mente de cristãos sinceros? -, 2) a doutrina da eleição soberana faz do homem um robô autômato, que não tem vontade própria e, por isso, não pode ser responsabilizado pelos seus atos, 3) os batistas não têm nenhuma relação com a Reforma Protestante e 4) se "somente a Bíblia" é a nossa regra de fé e prática (e é mesmo!), nada que esteja fora dela é necessário para o crente, de modo que basta ele ter a Bíblia na mão e saber ler para interpretá-la corretamente (ou seja, a clássica confusão entre o "Sola Scriptura" e o "Nuda Scriptura").
Com respeito à citação 1, Calvino nunca teve status de cidadão genebrino até perto de sua morte, foi expulso da cidade por ser zeloso da pureza da igreja e da concessão da Ceia a não-convertidos e, mesmo após ter voltado à cidade, ele nunca foi "político" (sic) como já ouvi por aí (ah, só Deus para me dar paciência!) e, quanto a Serveto, até procurou fazer algo para atenuar a sua punição (vale lembrar que Serveto foi um herege e, naquele contexto, a heresia era um crime punido com a pena capital), a qual foi aplicada pelo conselho de Genebra e não por Calvino. No tocante à afirmação 2, embora seja uma discussão mais detalhada, a melhor resposta está no fato de que a Bíblia ensina tanto a soberania absoluta de Deus sobre todas as coisas (a qual se baseia em Seus decretos e em Sua providência) quanto à responsabilidade humana (ou arbítrio humano), de forma que as duas coisas coexistem sem que se anulem mutuamente - em outras palavras, nós nos movemos, vivemos e existimos, mas tudo isso é feito em Deus e por meio Dele (Atos 17, vs. 28). Por outro lado, a afirmação 3 já foi refutada acima no texto e, com relação à afirmação 4, é salutar esclarecer que o "Sola Scriptura" significa que "a Bíblia é a nossa única fonte de REVELAÇÃO e a nossa única autoridade INFALÍVEL, INERRANTE e FINAL", o que é diferente do "Nuda Scriptura", que significa que "nada além da Bíblia tem importância para o crente e, assim, deve ser ignorado no que se refere à fé e à conduta". De fato, muitos crentes (como os tais "santos ignorantes do pau oco") confundem o Sola Scriptura com o Nuda Scriptura e, desse modo, dão motivos para as acusações levianas de romanistas e, igualmente, deixam de desfrutar de uma herança rica e valiosa de credos, confissões, catecismos e demais escritos cristãos acumulados ao longo dos séculos. Isto é, o cristão evangélico/protestante de verdade deve olhar para toda a boa tradição cristã (a saber, aquela endossada pelas Escrituras) e dizer "eu tomo posse!" ou "essa herança é minha!", visto que o nosso amigo Tiago também disse que "toda boa dádiva e todo dom perfeito vem do alto, descendo do Pai das luzes, em Quem não há mudança nem sombra de variação" (Tg. 1, vs. 17) bem como que "a sabedoria que vem do alto" é "cheia de bons frutos" (Tg. 3, vs. 17).
Finalmente, vale reiterar que há algo mais importante do que conhecer as verdades sobre a história da igreja (e, em particular, do protestantismo e seus desdobramentos), a saber: conhecer as Escrituras e, por meio delas, Àquele que nelas é revelado/se revela. Sabendo-se que o ser humano sempre foi fascinado pelo conhecimento e pelo que ele permite alcançar (a propósito, o pecado original, no Éden, está essencialmente ligado a um desejo ilícito por conhecimento e poder), se faz necessário reafirmar que ninguém acha/achará favor ou graça diante de Deus pelo simples fato de "estudar a Patrística e a teologia histórica", ou por "desenvolver uma vida intelectual" e não ser um "analfabeto funcional", ou ainda por entender de "escolasticismo" (tanto medieval como protestante). Dessa forma, numa época em que hordas de "Enzos inteligentinhos" e demais "salvadores da Civilização Ocidental" infestam o mundo (especialmente a internet) e vomitam a sua empáfia e soberba para quem tem paciência de ver e ouvir (vide Salmo 12, vs. 8), os cristãos verdadeiros devem se lembrar do que Jesus Cristo disse certa vez:
<<...Graças Te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, pois ocultaste estas coisas aos sábios e eruditos e as revelaste aos pequeninos; sim, ó Pai, porque assim o quiseste...>> [Lucas 10, vs. 21]
Esse trecho das Escrituras apresenta um momento de exultação de Jesus, no qual Ele se alegrou intensamente no Espírito Santo, cujo contexto confere um significado ainda maior à Sua afirmação, tendo em vista que a razão do júbilo de Jesus estava na liberdade divina de dar a conhecer os mistérios e privilégios do reino de Deus a quem não tinha importância, nem erudição nem qualquer mérito próprio - tudo isso de modo soberano e gracioso. Na seqüência do texto isso é ratificado, pois Jesus afirma que "...ninguém conhece o Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar..." (vide vs. 22). Isto é, o genuíno conhecimento de Deus não é adquirido por meio de "cursos de vida virtuosa" no Instagram, ou pela mediação de um "magistério supostamente infalível" (sic) ou de "neo-templários que fedem a leite com pera", bem como não advém da "autonomia hermenêutica" (pela qual todos acham que podem interpretar as Escrituras sem respeitar o que elas de fato dizem) ou da mentalidade "nem Armínio nem Calvino estão na Bíblia", mas provém única e tão-somente de Deus, o Deus trino, o Pai-Filho-Espírito Santo, conforme nos foi revelado nas Sagradas Escrituras, as quais nos são desveladas pela ação do próprio Espírito, de tal modo que somos levados a ver o Filho e crer nEle para a vida eterna e, assim, somos reconciliados por meio Dele com o Pai, outrora nosso inimigo (João 6, vs. 44-45; João 6, vs. 40; Romanos 5, vs. 10-11).
Portanto, se alguém aprender a respeito da história eclesiástica, do depositum fidei (o "depósito da fé", o acúmulo da tradição etc.), dos grandes credos, catecismos e confissões de fé e, mesmo assim, não experimentar a vida de Deus em seu ser, esse também será um "santo ignorante do pau oco", pois antes de tudo 1) não será, de fato, um santo, mas apenas terá uma "falsa aparência de santidade" e 2) por isso mesmo, será orgulhoso, desprezará os outros e se gloriará no que deve trazer vergonha (Filipenses 3, vs. 18-19). Que Deus me livre desse autoengano - ou melhor, nos livre! - ao me/nos levar aos pés dAquele que, da parte de Deus, foi feito para todos os que nEle crêem "sabedoria, justiça, santificação e redenção": o Cristo crucificado (1 Coríntios 10, vs. 30).
E quanto a você? Você pode reconhecer em si algum comportamento ou postura que te faria comparável a um "santo do pau oco" - ou seja, algum tipo de "bondade aparente" que apenas esconde uma "maldade real"?
Se você se identifica como um evangélico/protestante (em particular, como batista): havia em você algum grau de ignorância com relação à sua própria identidade e, conseqüentemente, um desprezo ao que deve ser valorizado em nossa história?
Finalmente, em quem temos buscado o real conhecimento de Deus? Nos "instagrammers" de "vida perfeita" (com 12 filhos, que treinam todo dia às 5 da manhã, que sabem latim, grego e inglês antigo, que fazem aula de piano e canto gregoriano e lêem 257 livros clássicos por ano nas suas línguas originais)? Em nossos próprios achismos e especulações teológicas e interpretativas da Bíblia? Na idolatria de nossas tradições e confessionalidade? Ou já entendemos que só conheceremos a Deus verdadeiramente se Cristo O revelar para nós?
Pelo privilégio de ser alvo da auto-revelação Dele,
Soli Deo Gloria!
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